Neste 19 de abril, Dia dos Povos Indígenas, Universidade mostra a importância do ensino superior para a luta dos povos originários
Três gerações da família da indígena Kaingang Gilda Kuita Rodrigues, de 68 anos, graduada em História EaD pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), em 2023, estudam ou já se formaram na Universidade. Ao todo, são 11 integrantes da família de Gilda que passaram ou estão na instituição. Dentre eles, cinco filhos: Ivan, Jaciele, Janaína, Jaqueline e Sérgio, e seis netos: Alexia, Aline, Jean Carlo, Julian, Natã e Voia.
Quatro dos cinco filhos se formaram nos cursos de Ciências Biológicas, Enfermagem, Direito e Pedagogia e uma filha está cursando Serviço Social no Câmpus Regional do Vale do Ivaí (CRV). Dos seis netos, há estudantes de Agronomia, Direito, Medicina e Pedagogia (EaD).
Segundo a coordenadora da Comissão Universidade para os Índios (Cuia) da UEM, professora Maria Christine Berdusco Menezes, a história desta família é um exemplo de como o Vestibular dos Povos Indígenas no Paraná, criado em 2001,vem cumprindo com o seu papel de inclusão desta parcela da população na academia e ampliando o poder de resistência e luta dos indígenas. “O interessante é que a maioria deles se forma e volta para as suas comunidades ou para suas lutas por direitos. Um exemplo disso é o Ivan, um dos filhos da Gilda. Ele concluiu os estudos e hoje está na representatividade da saúde indígena”. Atualmente, Ivan Bribis Rodrigues é coordenador do Distrito Sanitário Especial Indígena Litoral Sul, do Ministério da Saúde.
De acordo com ela, a UEM é a que mais forma estudantes indígenas no Paraná, mesmo sendo a com maior distância de terras indígenas. Até o momento, a UEM formou 49 indígenas e tem, atualmente, 59 matriculados. Os três cursos de graduação mais procurados pelos indígenas são Enfermagem, História e Pedagogia, mas também há estudantes em Administração, Arquitetura, Ciências Biológicas, Direito, Educação Física, Física, Geografia, Letras, Medicina, Odontologia e Serviço Social.
Menezes lembra que na escola da Terra Indígena Apucaraninha, em Tamarana, norte do Paraná, todos os professores são indígenas, sendo que cerca de 80% são formados pelos cursos da UEM e a maioria pelo EaD. “Esta modalidade de ensino ajuda muito eles, pois não precisam sair da comunidade para vir estudar presencialmente em Maringá, evitando gastos com deslocamento, moradia e alimentação, além de ficarem próximos às famílias, favorecendo, principalmente, as mulheres. Dos 59 alunos matriculados na graduação, 28 estão estudando pelo EaD”, detalha Menezes.
Na pós-graduação, a UEM também se destaca por ter sido a universidade que formou o primeiro mestre indígena no Paraná. Até o momento, graduou três mestres e, atualmente, tem três indígenas no mestrado e dois no doutorado.
“Eu acredito que o motivo da UEM ser a universidade no Paraná que mais tem alunos e formandos indígenas, mesmo estando distante de suas comunidades, seja pelo trabalho desenvolvido com os povos originários no Paraná, começado há mais de 30 anos com o Tulha (Laboratório de Arqueologia, Etnologia e Etno-história - LAEE), pelas ações e acompanhamento da Cuia e do apoio dos setores da UEM e das coordenações de cursos, sempre prontos para atender as demandas dos estudantes indígenas”, conclui Menezes.
Além do apoio e acompanhamento pedagógico prestado pela equipe da Cuia, a UEM disponibiliza uma sala na Biblioteca Central (BCE) exclusiva para uso dos estudantes indígenas. Neste espaço, eles se reúnem para estudar e trocar experiências. Outro local também bastante utilizado por eles é o Tulha, onde tem disponível cozinha e sala de estudo.
Educação fortalece e liberta
A mestranda indígena do Amazonas Neidemara Araújo de Souza, de 27 anos, da etnia Ticuna, que fica situada no Alto Solimões, decidiu vir estudar em Maringá porque o marido já estava fazendo doutorado na UEM, na área de Engenharia Química. “Além disso, em minha busca por universidades para fazer a pós-graduação, verifiquei que a UEM tinha um bom conceito e também a linha de pesquisa da Educação Escolar Indígena, que eu queria, pois o meu tema de estudo é a Formação Inicial dos Professores Indígenas Ticunas do Estado de Amazonas. Ingressei aqui em 2022 e, hoje, passei pelo exame de qualificação da minha pós-graduação.” A amazonense é orientada pela professora Menezes.
Na avaliação dela, que entrou na Universidade pelo sistema de cotas, esta política das universidades de reserva de vagas é muito importante para os povos indígenas. Neidemara conta que no início sofreu preconceito velado. “Os olhares que eu recebia dentro da minha turma, na sala de aula, me inibiam. Às vezes, eu não falava muito por conta dessas situações e também das minhas vivências do passado. Era um sentimento de exclusão, como se eu não fosse capaz, duvidavam da minha capacidade de pensar e entender. É claro que eu admito que tenho certas dificuldades, mas faz parte desse processo. Eu não pertenço a essa sociedade não indígena. Além disso, teve o choque cultural, pois venho do Norte do País, onde a realidade e o povo é muito diferente.”
Há um pouco mais de um ano, nasceu em Maringá, o filho de Neidemara e seu esposo. Ela conta que após concluir o Mestrado pretende fazer o doutorado na UEM. “Quero dar continuidade à minha formação. É uma luta minha mesmo, devido às minhas experiências, do período que atuei como pedagoga específica da minha etnia na Secretaria Municipal de Educação do meu município. Quero tentar solucionar os problemas que eu vivi. Contribuir e fortalecer essa causa da formação dos professores indígenas Ticunas. A gente tem que lutar para fazer valer essas políticas existentes, nos âmbitos estaduais e municipais. A maioria dos professores indígenas de Ticuna do meu município não conhece as políticas existentes voltadas para as áreas da educação, da saúde e de diversas outras áreas. Então, é preciso que a gente conheça e leve essa informação para os professores. De fato, a educação é muito importante, é valiosa para nós."
Os professores Tadeu Kaingang e Sheila Souza, ambos docentes do curso de Artes Visuais, da UEM, também desenvolvem trabalhos voltados para a comunidade em projetos na Associação Indigenista de Maringá (Assindi) e no Coletivo Kokir. "Vejo que o indígena está buscando essa ferramenta, que é a educação, como uma forma de luta. É importante para ele compreender esse código para que consiga também se defender porque se fala muito mal do indígena, então hoje o indígena está usando esse recurso para mudar isso. Através da escrita, ele está produzindo conteúdo, está escrevendo, temos indígenas formados com mestrado e doutorado, na universidade dando aula, que traz uma visão diferenciada do sistema, metodologia, didática sobre os povos indígenas, fazendo com que o estudante não-indígena consiga perceber como que o indígena vive no contexto contemporâneo", diz o professor.
A docente explica que a Assindi, instituição idealizada e fundada por sua mãe, Darcy Dias de Souza, disponibiliza cinco casas para estudantes indígenas da UEM. "Vale ressaltar que só Maringá oferece moradia específica para universitários no Paraná. Cada casa recebe a família de um universitário indígena, isto porque a experiência de dividir a casa entre pessoas que não eram da mesma família não deu certo. Além disso, a gente sabe que quando vem a família do estudante, é mais fácil a adaptação deles, assim permanecem mais tempo e conseguem concluir a graduação. Recebemos tanto famílias Kaingang quanto Guarani nestas residências. Já a casa de passagem, que tem capacidade para 60 indígenas, abriga somente integrantes da comunidade Kaingang, que a cada 30 dias, se revezam."
No último vestibular, 622 indígenas disputaram 52 vagas, sendo dez da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e seis de cada uma das sete universidades estaduais: Londrina (UEL), Maringá (UEM), Ponta Grossa (UEPG), do Oeste do Paraná (Unioeste), do Norte do Paraná (UENP), do Paraná (Unespar) e do Centro Oeste (Unicentro). No polo coordenado pela UEM, em Manoel Ribas, participam as Terras Indígenas: Marrecas, Koe Ju Porã, Ivaí e Faxinal, com 81 candidatos inscritos.
Ciclo de Debates Interculturais
O início do próximo calendário acadêmico da graduação do ano letivo de 2024 da Universidade Estadual de Maringá (UEM) será marcado por uma programação específica voltada para os estudantes indígenas. Nos dias 16 e 17 de maio, a Comissão Universidade para os Índios (Cuia) da UEM promove o Ciclo de Debates Interculturais 2024 - UEM: Os Desafios do Ensino Superior Indígena no câmpus sede da instituição. O objetivo é recepcionar os calouros indígenas e integrá-los à comunidade estudantil.
“Como o 19 de abril coincidiu com as férias letivas da UEM, idealizamos uma programação de eventos para desenvolver durante o ano letivo de 2024. Por meio de uma enquete, levantamos os temas que eles gostariam que fossem debatidos nos encontros. Para começar, no dia 16 de maio, vamos trazer os representantes mais velhos das etnias Kaingang e Guarani, que são os rezadores das comunidades, para que realizem uma reza e um canto de purificação das almas, a fim de que os alunos se sintam mais seguros aqui. Em seguida, iremos abrir espaço para outros membros das comunidades indígenas, inclusive, vamos procurar trazer um representante da etnia Xokleng, que já está na pós-graduação em Santa Catarina. A intenção é envolvê-los em atividades e discussões que os fortaleçam para que tenham uma permanência mais tranquila dentro do espaço acadêmico”, explica a professora Maria Christine Berdusco Menezes, coordenadora da Cuia UEM.
O evento é uma atividade acadêmica que irá provocar discussões sobre a importância do estudo e reflexões sobre o suicídio, que foi um dos temas mais sugeridos pelos indígenas em razão do aumento de casos entre os jovens indígenas. Para debater o tema com eles, uma psicóloga foi convidada. Ao longo do ano, o projeto dará continuidade com novos encontros sobre os demais temas elencados pelos próprios alunos indígenas. Menezes acrescenta que os encontros ao longo do ano ocorrerão em formato de roda de conversa para a interação entre o grupo.
“A educação é uma arma para nós, no sentido de luta mesmo, de entender o que existe, o que é nosso, e lutar pelo que é de direito”, sintetiza a indígena amazonense Neidemara.