Avanços como a aprovação do sistema de cotas raciais na Universidade Estadual de Maringá (UEM) há exatos dois anos continuam marcando o fortalecimento da celebração do Dia Nacional da Consciência Negra, ao lado da comemoração também do Dia Nacional de Zumbi.
Como toda instituição pública, gratuita e de qualidade, a UEM reúne professores pesquisadores e estudantes engajados na luta, na resistência dos negros e os direitos reivindicados por eles. A criação da reserva de vagas para este grupo étnico-racial, em 20 de novembro de 2019, pauta encaminhada pela Reitoria, é fruto do trabalho sistemático de instâncias como o Núcleo de Estudos Interdisciplinares Afro-Brasileiros (Neiab) e o Coletivo Yalodê-Badá.
Desde o Vestibular de Inverno de 2020, a UEM destina 20% das vagas às cotas para negros, das quais ¾ direcionadas aos negros de baixa renda e ¼ aos negros sem recorte social nos processos seletivos de ingresso na graduação, por causa da resolução aprovada pelo Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (CEP).
Paralelo ao empenho em prol de ações afirmativas como essa, que têm permitido a inclusão social defendida pela universidade pública, a representação desta causa têm se dedicado a outras agendas para fomentar o debate acerca do assunto, incluindo alguns eventos.
No começo deste mês, por exemplo, o Neiab promoveu mais uma edição da Semana Afro-Brasileira, com apoio do Departamento de Ciências Sociais (DCS), para celebrar o Dia Nacional da Consciência Negra. Ontem (19), uma live do Conversa PENsada discutiu as “Ações afirmativas: insubordinações negras no espaço universitário”. Participaram o professor Delton Aparecido Felipe, do Departamento de História (DHI), vice-coordenador do Neiab; além dos estudantes Laene da Silva Abade, aluna de Psicologia e integrante do Coletivo Negro do curso, e Bruno Barra, aluno de Letras, membro do Yalodê-Badá.
O Núcleo ainda participou, por meio da pessoa de Delton, ao longo de novembro, da campanha “Universidades Estaduais do Paraná na Luta contra o Racismo”, que na quinta-feira teve o evento de encerramento.
Espaço
O Núcleo de Estudos Interdisciplinares Afro-Brasileiros da UEM serve para a construção de um espaço de acolhimento para que alunos negros tenham espaço de fortalecimento de suas identidades, possam encontrar apoio e dialogar com pessoas de representatividade.
O Coletivo Yalodê-Badá é auto-organizado por jovens negros que pretendem “pautar a temática racial dentro dos movimentos sociais, transformando e resistindo”. Segundo texto de apresentação do coletivo na rede socia, “a ideia de raça diz respeito a um construto social, histórico, politico e econômico no qual objetivava justificar a colonização, escravidão, segregação, perseguição e morte de milhares de pessoas”.
Direitos Humanos
Há que se destacar ainda que, em junho deste ano, a UEM aprovou a política de direitos humanos da instituição. O documento, aprovado após amplo debate no Conselho Universitário (COU), orientará as ações da instituição e legislar sobre o tema no ambiente universitário. Trata-se da Política de Direitos Humanos, Promoção e Proteção de Grupos Vulneráveis e Garantia das Liberdades Individuais. A medida foi considerada uma conquista, fruto de um trabalho coletivo dentro da Universidade, representando um grande avanço para a universidade no que diz respeito às questões relativas aos direitos humanos e sociais, fazendo com que a UEM seja cada vez mais inclusiva e representada por todos.
A resolução previu a criação do Comitê de Direitos Humanos, para defender liberdades individuais, diversidade religiosa e promover a proteção de negros, mulheres, indígenas, pessoas com deficiência, imigrantes, população LGBTQIA+ e outros grupos vulneráveis.
De acordo com o professor Ailton José Morelli, do Departamento de História (DHI), um dos responsáveis pela proposta, “esse é mais um momento marcante na história da UEM, de discussão e reconhecimento da necessidade de nos organizarmos para garantir direitos individuais e coletivos". Morelli aponta que, com empenho constante, haverá ações de garantia de direitos, inclusão, permanência, combate à violência e reorganização de práticas acadêmicas. “Assim, a UEM poderá cada vez mais atuar na direção de uma sociedade mais justa e inclusiva”.
Os direitos humanos englobam direitos individuais, coletivos, transindividuais ou difusos reconhecidos internacionalmente nos âmbitos civis, políticos, sociais, econômicos, culturais e ambientais.
Veto e pressão
Talvez poucas pessoas se recordam, mas em 2009 a Câmara Municipal de Maringá chegou a aprovar, em dois turnos, a criação do feriado alusivo ao Dia Nacional da Consciência Negra no município. À época, Maringá se tornaria pioneira dessa iniciativa no Paraná e se juntaria a cerca de 400 cidades em todo o país na comemoração ao dia 20 de novembro, celebrando a data como símbolo da luta em prol da igualdade racial.
Porém, o prefeito Silvio Barros (PP) vetou o projeto e os vereadores, que haviam aprovado o feriado por 12 votos a 3 em segundo turno, em fevereiro, recuaram e acataram ao veto por 11 a 4. O então chefe de Gabinete de Sílvio, atual prefeito Ulisses Maia, disse que a Procuradoria da Prefeitura entendia que a lei federal 9.093/95 era clara ao afirmar que feriados civis só podem ser criados pela União, com exceção do aniversário da cidade. "Existem municípios que aprovaram o feriado e estão sendo questionados na Justiça, por isso resolvemos não criar transtornos", afirmou.
A verdade é que a lei que instituiu o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, a de nº 12.519, em novembro de 2011, no governo de Dilma Rousseff, não transformou a data em feriado nacional, dando aos governos de cada estado e cidade do Brasil a opção de optar pela fixação do feriado ou não. Até 2018, o dia 20 de novembro era feriado em 1.047 municípios brasileiros, de um total de 5.561.
Com a concordância do veto, em 25 de março de 2009, a polêmica se instalou. Afinal, a decisão da Câmara pelo decreto do feriado tinha sido unânime. Para a oposição, pressão de empresários gerou a mudança de posição dos vereadores.
Depoimentos
Ao comentar a data, Delton Aparecido Felipe (foto ) lembra que em 2021 faz 50 anos que o poeta Oliveira Silveira, um dos pioneiros do Grupo Palmares, propôs que o dia 20 de novembro fosse escolhido como o Dia da Consciência Negra em homenagem a Zumbi dos Palmares. Líder do Quilombo dos Palmares, “dedicou a sua vida lutando contra a escravatura no período do Brasil Colonial. O 20 novembro é uma data que evoca reconhecimento da luta do povo negro por liberdade, dignidade e direitos”.
Além de um currículo acadêmico de destaque, Delton, doutor em Educação, também tem um histórico de participação na luta pelo ativismo negro. Ocupa a diretoria de Relações Internacionais da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), atua como investigador do Neiab, é pesquisador visitante da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV), em São Paulo, membro do Conselho de Igualdade Racial de Maringá-Paraná (Compie), conselheiro permanente de Conselho de Direitos Humanos do Estado do Paraná (Coped) e conselheiro consultivo da Ouvidoria Externa da Defensoria Pública do Paraná.
Para ele, o Dia da Consciência Negra é um momento nacional de reflexão sobre a necessidade da permanente, constante e contínua discussão da formação social brasileira e das relações de poder que colocou à margem parte da população brasileira a partir de práticas racistas. Práticas estas que, segundo Delton, incidem sobre o local que os homens e mulheres negras ocupam no tecido social.
“O dia 20 de novembro nos convoca a pensar ações de forma mais intensa que instituam políticas de reconhecimento, reparação e valorização da população afro-diaspórica no Brasil durante 365 dias”, diz o pesquisador. “Ou seja, o dia 20 de novembro não pode ser visto com fim em si, mas um dia de planejamento que pode ser reorientado a qualquer momento para o melhor combate ao racismo estrutural e à construção de políticas antirracistas nas instituições públicas e privadas do país”, defende o professor.
À frente da coordenação do Neiab, a professora Marivânia Conceição Araujo, do Departamento de Ciências Sociais da UEM, ressalta que o 20 de novembro foi pensado como uma data comemorativa pelo professor Oliveira Silveira para substituir o 13 de maio, ocasião em que se comemora a promulgação da Abolição da escravidão no Brasil. “Mas, intelectuais, pesquisadores e militantes do Movimento Negro consideram que a Abolição da escravidão foi uma ação incompleta, visto que houve a libertação das pessoas escravizadas sem nenhuma forma de reparação, nenhuma política pública foi criada para beneficiar a população negra”, enfatiza. Disso resultou que 50 anos depois do fim da escravidão, a maioria da população negra brasileira continuava analfabeta. "O 13 de maio há pouco o que se comemorar!. 20 de novembro é uma data para a reflexão sobre a situação da população negra no Brasil, para pensar na desigualdade, na exclusão, na discriminação racial, na violência contra população negra”, assegura.
Segundo a coordenadora, a população negra está sempre lutando, reivindicando igualdade racial, mas o dia 20 é uma data emblemática em que também se comemora o herói negro Zumbi dos Palmares, uma data cheia de simbolismo para se trazer mais pessoas para essa discussão, poder ampliar e dar mais visibilidade às demandas da população negra.
Marivânia participa há 15 anos do Neiab. Tem atuado com estudantes, professores, pesquisadores na elaboração de trabalhos acadêmicos que discutem as relações raciais envolvendo a população negra no Brasil. Participou também da Associação União Consciência Negra em Maringá, assim que eu chegou à cidade, sendo recebida pelos integrantes da entidade: o presidente, advogado Alaor Gregório de Oliveira, a professora Aracy Adorno Reis e o professor Jairo Carvalho. Infelizmente, lembra ela, Jairo e Alaor Gregório faleceram esse ano e “vão fazer muita falta na luta contra o racismo em Maringá’. A professora ainda participou de atividades na Associação e isso, de acordo com ela, foi muito importante para o letramento racial, o conhecimento dela e desenvolvimento nas discussões sobre o racismo e a desigualdades sociais que oprimem a população negra no Brasil.
O leitor ainda pode ver o depoimento de luta e superação de Janete Cristina da Silva, professora de balé no Instituto Amafil de Responsabilidade Social, e aluna do curso de mestrado no Programa Associado de Pós-Graduação em Educação Física UEM/Universidade Estadual de Londrina (UEL).
O texto “O corpo negro na paleta de cores do balé clássico” foi publicado na quinta-feira no Conexão Ciência (C²), um projeto de extensão da UEM desenvolvido por meio da Pró-Reitoria de Extensão e Cultura, com apoio da Superintendência Geral de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (Seti).
Tribuna
Doutora em Sociologia, Marivânia (foto) esteve quinta-feira (18) na Câmara Municipal, a “Casa do Povo” como ela própria definiu. A convite da vereadora Ana Lúcia Rodrigues (PDT), ocupou a tribuna para falar sobre o Dia da Consciência Negra na sessão ordinária do legislativo.
Ao falar sobre as razões da comemoração da data, disse que uma delas é porque a população negra é maioria no Brasil, 54% dos habitantes, ante os 25% em Maringá. O outro motivo é celebrar a memória de Zumbi dos Palmares, líder negro que lutou contra a escravidão durante a vigência dela. Ele liderou o maior quilombo do país, cuja duração foi de 100 anos.
A comemoração se dá ainda, segundo disse Marivânia, porque a contribuição da população negra é enorme, tendo papel relevante na agricultura, culinária, religião, no trato com as crianças, na interação com as pessoas, no cuidado com os mais velhos, na tradição oral (histórias, lendas, receitas).
“Comemoramos o 20 de novembro porque a história do Brasil não pode ser contada sem se falar na influência da população negra nas nossas relações. Somos o que somos, brasileiros da forma que somos, porque recebemos uma influência enorme da história e da tradição negra no Brasil”, afirmou.
Infelizmente, os números mostram a dura realidade na qual os negros estão imersos, de acordo com a professora. Ela citou dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Pesquisa (IBGE) segundo os quais a maioria dos desempregados são negros, as mulheres negras recebem os mais baixos salários, as pessoas negras têm menor escolaridade, menor acesso às políticas públicas como saúde, educação, saneamento básico e moradia, negros e negras tem mais dificuldades para conseguir financiar seus empreendimentos, embora sejam eles os gestores da maioria dos pequenos negócios.
A explicação para estas desvantagens está na escravidão (300 anos no Brasil). Ao ser abolida, ela não o foi de forma completa, não fazendo a reparação e nem a adoção de políticas públicas de inclusão deste segmento populacional. Esta falha acabou perpetuando os problemas causados pela escravidão. A segunda explicação é que o Brasil é uma nação racista. “Vivemos num país cuja desigualdade racial é enorme”, disse Marivânia, desafiando os presentes a fazer o “teste do pescoço”. Consiste em observar, virando a cabeça à direita e à esquerda, aonde estão as pessoas negras nos espaços em que participamos. “Se elas estão ao seu lado, sentadas à sua mesa, participando do momento, ou estão servindo ou limpando. Este é um retrato da desigualdade no Brasil”.
Conforme ela, no Brasil o racismo é naturalizado no dia a dia, tanto nas escolas como nas televisões, cinema e nas lojas, uma realidade que a população negra conhece bem. Outro agravante é que, segundo ela, o racismo não é debatido. “E um problema que não é discutido não será resolvido”, adverte.
A solução do racismo pode se refletir futuramente na composição das câmaras de vereadores, por exemplo. Quanto menos racismo houver, maIs negros serão vistos no legislativo e judiciário. O racismo é um problema sério que atrapalha e dificulta o desenvolvimento do país. “Imaginem vocês quantos talentos negros são desperdiçados por conta do racismo”, indagou. Uma outra razão para o fosso que separa negros e brancos é que o racismo não sofre punição, embora seja um crime inafiançável.
E como a Câmara Municipal pode contribuir? Marivânia sugeriu a criação de práticas para o cumprimento de leis e aprovação de novas leis visando alcançar a igualdade racial. Sugeriu também ao legislativo municipal pensar na efetivação de leis em vigor, como a de nº 10.639, que fala da obrigatoriedade do ensino e da história da África, da cultura afro-brasileira nas escolas. Ainda propôs mais atenção ao sistema de cotas raciais, ampliando a reserva de vagas em concursos públicos, além da efetivação de políticas públicas para os negros, especialmente na saúde. Pesquisas mostram que as mulheres negras recebem menos anestesia na hora do parto, como resultado de uma lenda de que elas são mais fortes que as mulheres brancas ao dar à luz um bebê.
Ela ainda sugeriu aos vereadores pautar a discussão sobre a falta de punição ao crime de racismo e a aprovação de campanhas publicitárias contra o racismo, fazendo com que a sociedade entenda que piadas, brincadeiras, xingamentos e ofensa precisam ser proibidas.
A professora doou um livro do Neaib para a biblioteca da Câmara Municipal. Pela presença no legislativo, a coordenadora do Núcleo recebeu congratulação da Associação dos Docentes da Universidade (Aduem). “Nosso apoio e parabéns à professora Marivânia e a todos que lutam pelo desenvolvimento e a consolidação de políticas públicas de afirmação e de combate às desigualdades étnico-raciais”, diz a nota emitida pela entidade.
História
O 20 de novembro como o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, instituído oficialmente pela Lei 12.519, de 10 de novembro de 2011, faz menção à morte de Zumbi, o então líder do Quilombo dos Palmares entre os estados de Alagoas e Pernambuco, morto nesta data. Zumbi foi morto em 1695, por bandeirantes liderados por Domingos Jorge Velho.
A data da morte dele motivou membros do Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial, em um congresso ocorrido em São Paulo, em 1978, a elegerem a figura de Zumbi como um símbolo da luta e resistência dos negros escravizados no Brasil, assim como da luta por direitos reivindicados pelos afro-brasileiros.
Consciência negra é ao mesmo tempo referência e homenagem à cultura ancestral do povo de origem africana, que foi trazido à força e duramente escravizado por séculos no Brasil. É o símbolo da luta, da resistência e a consciência de que a negritude não é inferior e que o negro tem seu valor e seu lugar na sociedade.
Muitas pessoas desaprovam, de forma equivocada, a celebração da consciência negra e sim a consciência humana. Na avaliação de alguns estudiosos, esta postura é uma ideia que pode até ter surgido com boas intenções, mas acabou prestando um desserviço à luta contra o racismo e a favor da igualdade racial. Historicamente a sociedade sustentou-se por meio de uma relação desigual entre pessoas por vários fatores. Os principais fatores de desigualdade são o gênero, a cor da pele, a sexualidade, e a condição socioeconômica.